BRINQUEDO DE MENINO CRESCIDO


Por Dani da Gama

Até 2008 skate era legalmente proibido em Blumenau. Em 2010, São Paulo tentou proibir o esporte (e meio de transporte!). Em 2013, em SJDR, o skate se arremessa contra a arquitetura urbana, de manobra em manobra, nos pés de Jan.

Fui encontrar meu personagem em casa, a reboque de um amigo em comum que repete desde que o conheço: “Se o Jan morasse em uma cidade como SP ele podia viver de skate, velho”. Acredito. Suas manobras são inacreditáveis.
Jan Yuri chega enganando seus 20 anos, com aquela cara de menino. Sou recebida, por acidente, com música na sala. Estranhei não vê-lo como nas fotos que conhecia. De dreadsloucos. Hoje está de chapéu, cabeça tecnicamente raspada. Um sorriso de menino, um menino de 20 anos. Alargardores na orelha, e uma despretensão de quem, bom atleta, só quer fazer o que gosta.
Pergunto sobre suas origens no esporte. “Comecei a andar de skate quando tinha 8 anos de idade, e foi porque meu irmão mais velho já tinha andando e nesse tempo ele tinha parado para entrar no quartel. Aí eu usei o skate que ele andava, e até hoje eu ando, mas não no mesmo skate”, ri. Jan aprendeu muito participando de campeonatos do circuito mineiro, quando aconteciam disputas com frequência, entre 2000 e 2006. “Todo ano tinha no mínimo duas competições. Eu não ficava bem posicionado não, eu era muito novo, aqui não tinha pista de skate, chegava lá tinha que andar numa pista que a gente nunca viu, mas assim podia ver quem andava há mais tempo e aprender alguma coisa”.
Hoje quase não há campeonatos. Jan tem patrocínio da marca Custom, de Santa Cruz de Minas, cidade onde trabalha. Mas explica que no começo teve muito apoio da família. “Por eu ter começado muito novo sempre tive muito apoio do meu pai, que nunca deixou faltar material pra eu andar, me levava pra andar no Vereda, que era a única pista que tinha aqui. A dificuldade nessa questão não era tanta, o preço do material era mais barato. Mas aqui não tinha ninguém que andava, aí a gente tinha que aprender sozinho na marra, quando a gente viajava era que via alguma coisa diferente nos campeonatos”.


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A conversa é divertida, com violão ao fundo. Resolvo perguntar sobre o trágico. Conte um tombo memorável, peço. Ele é sábio na resposta. “Quando você bate a cabeça é quando você toma o maior susto. Depois disso te garanto que você não bate
no mesmo lugar de novo não, fica mais cauteloso, mais esperto. Na próxima vez que você for fazer você se previne para não acontecer o mesmo...”. Enfim, a vida, metaforicamente.
Pergunto de outra dificuldade. Jan pratica um esporte muitas vezes marginalizado, em uma cidade tradicional, de interior. Quero saber se isso é uma barreira. Jan também consegue compreender isso como um incentivo. “Se alguma coisa for desenvolvida e registrada, vai ter partido da ‘gente’ que começou, e isso me incentiva: ver que continuou, nao é mais ‘a gente’ só, que anda. Por mais que seja pouco o incentivo ele é muito maior do que em 2003, 2004.”
Anoto no meu caderno, acho que o menino levou muito tombo. Ele sabe demais.


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Jan pratica skate de rua. Ao contrário de uma pista calculada para manobras, sua pista é a cidade. Em SJDR, então, a pista de Jan é o cenário barroco da cidade dos sinos. “O legal disso é que você faz uma coisa num lugar meio improvável, quando tu consegue um registro nessa situação improvável, ‘andar de skate no cenário barroco’, o resultado final é diferente e chama a atenção pra quem está acostumado a praticar na pista, no mármore extremamente liso, que facilita, até, as condiçõs da manobra”. Falo sobre o uso dos equipamentos urbanos para as manobras – corrimão, escada, ladeiras: tudo vira pista. “A arquitetura, né?”, filosofa: “A questão do skate é mais o contato que você tem com ele. Você começa a brincar com isso, aproveitar uma manobra e partir para outra, começa com o básico e vai aprimorando com criatividade, e cada arquitetura, construção urbana te proporciona uma manobra. E cada skatista tem uma visão da manobra da forma como anda no skate. Você tem mais intimidade e consegue ir com ele em lugares que voce não iria sem ele”.
Sim. Como um brinquedo mesmo, de menino grande.
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Mas nem tudo são flores. Como conta nosso atleta, “o skate é praticado na rua e na rua você vê de tudo – o positivo e o negativo, só que extremamente.” E o skate ainda hoje é tratado com reservas. “É mal visto porque, pelas manobras serem de impacto, se o chão não for bom, provavelmente vai quebrar. Ou o skate pode quebrar. Como você pode se quebrar!”. Coisa séria fica leve na risada brejeira.
Jan interpreta que o que se critica no skatista são coisas que em pessoas “normais” – entendo, os normais são os que não andam de skate! – também seriam criticadas. O problema é que: o que o skatista faz, ele faz com o skate debaixo do braço – seja algo bom como uma iniciativa cultural, seja algo ruim – sempre relativo...
“O skate é dado como um brinquedo pro fiho, que vai tomar gosto e não vai querer fazer mais nada... ele é tao fascinante que se você se deixar levar pelo prazer
dele vai ficar só no skate, deixar de estudar, ir na aula... Aconteceu comigo, mas eu não me deixei levar...” Jan teoriza: “O skate é tao envolvente que ele se torna uma parte do seu corpo. Alguém que vê você, vai ver você com o skate, e vão generalizar: ‘skatistas fazem isso’”.
Isso dá uma séria discussão metafísica, sociológica. Jan brinca e se desculpa: “Vai ficar muito confusa essa entrevista!”.
Mas penso que, ouvindo Jan, o skate para mim está ficando cada vez mais claro.


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Peço para falar dos campeonatos que ganhou. Troféus? Do alto de sua simplicidade, um ponto de interrogação se abre no mesmo lugar onde irá se acender um sorriso: “O que importa é o skate, um chão liso, uma pessoa no skate e vai acontecer tudo que você quiser, quase!”, ri. Ele não sabe quantos campeonatos venceu. Decide que campeonatos que ganhou nem são importantes para a entrevista. Nem para ele. “O que importa pro skatista é material para continuar andando de skate. Já ganhei campeonato que não lembro. Compito desde os 9 anos de idade, sacou? Aconteceu de eu ficar em primeiro em vários e não tenho registro de todos. O que importa é incentivar o skatista que ganhou no dia, que andou melhor, com material para ele continuar andando e poder se desenvolver mais”. Certo, Jan. A gente sacou.
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É tarde, e pensei em um final poético para a matéria. Perguntei, inocente no meu clichê jornalístico: “Em uma palavra, o que você sente quando desce o skate no asfalto?”. Ele pára, pensa segundos. E derrama:


- Aeeeeee!!!!!!


Desligo o gravador, satisfeita.
Não é só uma interjeição, leitor, compreenda. Para quem vê esse guri brilhante, é pura poesia.