DIZEM QUE SOU LOUCO

Foto: Cecília Santos

Chego ao posto de atendimento e triagem do SUS. Quase em estado de SOS. “Preciso tratamento psicológico. É aqui que consigo encaminhamento?”. A atendente, sem nem olhar para cima arrasta o grosso caderno, escolhe um horário, me agenda para uma avaliação. Pronto, em uma semana serei atendida. “Hum, certo, mas .. estou em crise neste momento. Não há como eu consultar com um psiquiatra, um psicólogo?, preciso de um atestado para a ausência ocorrida nas aulas”.  A atendente me olha como quem “entendeu tudo”. Tento me explicar, que não sou exatamente isso que ela está pensando – não estou aqui tentando folga para o trabalho ou matar aula, e argumento: “Ei, o que eu tenho tem CID, é doença. Eu tenho direito a pedir um atestado...” . Nada feito.Seria melhor eu ter dito que estava com uma crise de rinite.


Por Dani da Gama 


Enquanto aguardo para ser atendida no centro de saúde mental, uma simpática portinha meio ao centro histórico de São João del-Rei – visão doce e bucólica para os pacientes que abarrotam a sala de espera, uma jovem aparentemente saudável-normal-feliz que acompanha uma provável parente – emudecida e longínqua – comenta indignada: “Olha como está São João del Rei – todo mundo viciado em Rivotril, Clonazepan.. todo mundo com depressão”.

Dados: 450 milhões de pessoas sofrem ou sofrerão de problemas mentais, neurológicos ou comportamentais ao longo da vida (quem diz é a OMS). Depressão (2º.maior problema de saúde pública no mundo), pânico (que acomete 3,5% da população), Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), esquizofrenia, transtorno do estresse pós-traumático, transtorno obssessivo compulsivo (TOC), fobias, transtorno bipolar, transtornos alimentares, paranoia, transtornos vindos da toxicodependência. Afinal, em nosso mundo líquido e incerto, meio a crises de valores, relacionamentos superficiais, ode ao materialismo, hedonismo, corrida pelo sucesso – leia-se carro zero, bom cargo, televisão full qualquer coisae coração empty ever – quem é louco? Quem se acostuma e se adapta à “normalidade”? Ou quem, inevitavelmente e sem estômago, pira?...


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Doenças e mais doenças. É compreensível: constatam-se cada vez mais casos de problemas de saúde mental, fragilizada pelo mundo caótico, metrópoles em que a solidão é o pano de fundo do engarrafamento de carros, sons, luzes, pessoas que se esbarram, relacionamentos que duram minutos, sirenes e medos constantes. A violência atinge cidades moderadamente serenas como esta em que os sinos conversam. (Talvez, eles conversem mais do que os transeuntes, cada vez mais solitários em suas ilhas).

 A banalização, por outro lado, acompanha o crescimento dos casos, principalmente os mais comuns como Transtorno Obssessivo Compulsivo, Depressão, Bipolaridade. E a “novidade” chega à Hollywood com suas estereotipagens universalizantes. Na cena do filme o personagem postula:“Você tem TOC*”. A cena se passa em uma sala, uma TV transmitindo um jogo de futebol e um torcedor fanático que organiza os controles remotos em linha diagonal na mesinha de canto para que seu time vença a partida. A fantasia mostra aquele personagem perturbado incrivelmente metódico e chato que segura um lenço como amuleto em finais de jogos de basquete, e a sociedade passa a encarar mais uma leva de “doentes” como pessoas apenas supersticiosas, incapazes e cheias de manias, o que reduz – e muito – o quadro de um obssessivo-compulsivo. Assim, numa pretensa tentativa de abordar o tema e torna-lo comum, as ideias inexatas e nem sempre verdadeiras que a mídia propaga dos distúrbios mentais acabam por prejudicar a situação, já difícil, dos seus portadores.

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Lembro da primeira consulta a um psiquiatra. Na sala de espera em vão tentava parecer normal, quanto mais me esforçava mais reparava que qualquer coisa que eu fizesse poderia apontar uma possível esquizofrenia, ansiedade, neurose, psicose...! Já na consulta, o doutor me diz - o que você tem é TOC, você vai melhorar. Você ainda vai ter um namorado. Eu não ri, obviamente. Mas pareceu-me cômico se nao fosse trágico – quando você se torna vítima da doença, tudolhe parece muito, muito impossível.
J.H** (31 anos), faz tratamento para transtorno bipolar. Ela conta que o distúrbio consumiu e arruinou uma parte muito grande de sua vida até agora. “Sem diagnóstico e me sentindo deslocada no mundo, eu ganhei muitos rótulos dado ao comportamento afetado pelas variações de humor. Tudo foi afetado: trabalho, vida amorosa, carreira. Em família, era complicado não ter crédito nem confiança, no trabalho era impossível ter concentração e foco e nos relacionamentos era impraticável administrar os danos causados pela falta de estabilidade”. Em meio ao caos, confessa que em muitos momentos pensou em “desistir” e que levou tempo até o efeito do tratamento fazê-la se sentir participando do mundo novamente. Mas J.H. depõe consciente e otimista: “É um saco ter que tomar remédio pra sempre, viver com o medo que as pessoas têm de eu ter uma crise e principalmente com o fato de que eu não posso deixar de me policiar o tempo todo. Apesar de tudo que é ruim, é muito bom ter encontrado a combinação certa de medicamentos e me conformado com a necessidade da medicação e da terapia. As mudanças no estilo de vida são muito grandes, mas compensam se for pra me sentir em paz comigo”.

Já Dorotéia de Cássia Miranda (54 anos)tem TOC (Transtorno Obssessivo Compulsivo) desde os 17, quando sua filha nasceu. Ela conta que por causa do TOC teve  muitos problemas familiares: “Aconteciam muitas brigas inclusive com minha mãe, eu acabei me divorciando e fui me afastando cada vez mais da família, inclusive da minha filha. Eu tinha muitas manias inclusive de limpeza e organização por isso não consegui conviver com crianças. E minha filha era uma criança”, conta.Esse afastamento trouxe graves consequências para seu relacionamento com a filha, porque entre organização, limpeza, e a menina, optou pela organização e limpeza. Hoje Dorotéia busca uma conciliação consigo e com a filha: “Isso me trazia muita culpa porque eu me achava um monstro e não sabia que estava doente, há um ano descobri o TOC e de lá para cá minha filha me perdoou e nosso
relacionamento vem melhorando aos poucos”. Ela depõe ainda: “Por 37 anos eu escondi o TOC , mesmo porque tinha muita vergonha”. Além de TOC, Doroteia também manifesta TAG (Transtorno da Ansiedade Generalizada)e déficit de atenção. Tais transtornos atrapalharam sua vida profissional e escolar. Ela narra que na escola sofreu preconceito por parte de professores e alunos. “Consegui me formar professora a muito custo, mas não consegui fazer faculdade, não dei conta, também profissionalmente fracassei, pq mais uma vez não consegui lidar com desorganização e sujeira das crianças”.

Apesar dos 37 anos que conviveu com estes transtornos, sem tratamento, hoje Dorotéia demonstra coragem e otimismo. Ao nos dar a entrevista, recusou o anonimato: “Pode colocar meu nome todo se precisar, porque hoje o que eu quero é gritar: hoje estou liberta dos sintomas do TOC e tratando da TAG, grito mesmo sem vergonha nenhuma, sofro de doença mental, e se voce tem preconceito se afaste, porque perto de mim desejo apenas os que me amam como sou realmente.”

É claro no discurso de Dorotéia e J.H. a dificuldade que o portador de doenças psíquicas sofre consigo mesmo. A vergonha, a culpa, o“fracasso” e a “ruína” estão na tônica de seus depoimentos. A falta de compreensão da sociedade é um segundo round para uma luta que já acontece internamente, e talvez de forma mais cruel – o preconceito contra si mesmo.

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Transtornos Mentais e Comportamentais: condições caracterizadas por alterações mórbidas do modo de pensar, e/ou do humor, e/ou por alterações do comportamento associadas à angústia expressiva, e/ou deterioração do funcionamento psíquico global. (diz a OMS). E entre tantas denominações – transtorno, doença, distúrbio? – a psiquiatra Dra. Natalia de Menezes Ramos explica que as diferenças de terminologia servem para a comunicação entre os médicos e que gradativamente substituiram o termo “doença mental”, pelo de“transtorno mental”, como uma solução vocabular. Mas isso não tem mudado muito para os doentes, transtornados ou seja lá do que queiramos chamar.
Conforme o psicólogo Luis Carlos Rezende, que realiza atendimento no SPA (Serviço de Psicologia Aplicada) ligado ao Departamento de Psicologia da UFSJ, há dois grandes grupos de doenças mentais: as psicoses e as neuroses: “Na psicose existe uma desestruturação.Em termos físicos seria como se a pessoa não tivesse um braço, uma perna. Ela teria que usar uma prótese.A terapia para a psicose seria dar ao paciente uma estrutura de contato com a realidade”. Para nos explicar melhor, o doutor dá um exemplo um pouco extremo: o paciente pode olhar para uma cadeira e chamar de chiclete, de calça. Nestes pacientes, o simbólico funciona, mas sem uma ligação com a realidade. Já no caso da neurose a pessoa tem uma estrutura, mas ela funciona mal. Mais uma vez fazendo uma ponte com o corpo físico, o Dr. Luis Carlos nos exemplifica: “Na neurose é como se você tem a perna mas não consegue andar direito.” Por isso é tão importante a ajuda terapêutica e diagnóstica, para que se saiba o que está acontecendo, e como ajudar o paciente.
            
Mas nem sempre o portador tem consciência ou auto-aceitação suficiente para buscar ajuda e diagnóstico. O preconceito afasta as pessoas do consultório, e este preconceito é na verdade histórico e cultural.“Se voce estudar a história da loucura,” explica a psiquiatra Dra. Natalia de Menezes Ramos, “ela por muito tempo foi vista pelo lado moral”. A Dra. Natalia nos fala sobre a ‘Grande Internação’ (tratamento moral da loucura ocorrido na Europano século XVI, através da tentativa de sua exclusão do seio da sociedade) e que engolia “qualquer coisa que se desviasse da norma moral vigente – loucos, ladrões, alcoolistas”, levando estas pessoas para instituições consideradas apropriadas para tratamento.

O interessante é que depois de um tempo, houve uma separação destes internos, porque os bandidos não queriam ficar no mesmo pátio que os loucos.


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Até hoje os portadores de transtornos mentais carregam esse estigma, de serem “errados, inferiores”. Há, segundo a psiquiatra, a visão de que “a pessoa está assim porque não reage”, o que advém do peso dessa História em que o paradigma da psiquiatria era o tratamento de correção moral para os doentes. A Dra. Natalia ainda afirma que, tanto se referia a doença mental a um desvio de conduta, que o profissional responsável pela avaliação e encaminhamento dos doentes (e seu necessário afastamento do convívio social) era um juiz, e não um médico.
Hoje os avanços da ciência no conhecimento do cérebro humano possibilitam conhecer as origens dos transtornos, e trata-los longe da consideração de desvio de conduta ou fraquezas comportamentais. É ainda a dra. Natalia quem explica: “Há (nestes transtornos) uma alteração biológica, farmacológica do cérebro. A medicação não é para sedar, é para corrigir uma alteração neuroquímica.”
Da mesma forma, o Dr. Luis Carlos reafirma a questão orgânica na expressão comportamental: “Se você mexe na química da pessoa, algo na expressão comportamental também muda. Temos que parar de pensar o ser humano em uma resposta ‘é ou não é, sim ou não’”, postula, e completa: “A vida te dá emoção, pensamento, como te dá um braço. Essa parte abstrata você desconhece mas você pode expressa-la, assim como a gente vê o amor, o ódio, a disposição de ajudar, construir, destruir”.
Estamos quase perdoados.

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O psicólogo Luis Carlos considera que devemos ver o ser humano como um todo. Essa concepção do homem de forma total deixa clara a vinculação do físico, do emocional e do psicológico. “A ideia que há um tempo atrás separava o corpo e a alma, a alma como algo que tem que continuar e o corpo como algo que vai acabar, para mim é uma inverdade. O ser humano é uma harmonia, é um todo.”
Perguntei a ele por que os pacientes ainda hoje sofrem tanta discriminação. A pergunta que realmente me movia àquela altura era por que a rinite é doença, tratável, perdoável, atestável, e uma crise de transtorno bipolar não?? O Dr. Luis Carlos dá sua versão: “Se a pessoa tem uma gripe e eu tenho medo de pegar, eu não chego perto, eu tenho mecanismos que reconheço como possíveis de me proteger. A doença mental, o comportamento, só de a pessoa manifestar, ela já mexe também comigo, porque se nós temos uma mesma matriz e vejo alguém deprimido, eu passo a pensar que eu também posso ficar deprimido.” Dentro dessa perspectiva de que nós tememos o que não conhecemos, nós nos protegemos através do evitamento: “Nosso pensamento funciona de uma maneira sem controle. Se existe um copo cheio de água simbolizando que vou ficar doido quando isso encher, vão acontecendo decepções, alegrias, de repente a gota d’agua da expressão do outro desencadeia em mim meu processo de loucura.” É mais fácil, portanto, considerar que o outro é pior do que eu, que em mim não pega.

E então, se a sociedade pratica o evitamento, por que não existe um acolhimento entre as pessoas do círculo de convivência do doente? O Dr. Luis Carlos também explica: “Os familiares de uma pessoa com sintomas de depressão não sabem como lidar com isso porque temem que aquilo possa se estender a eles”. Ressalta ainda que é comum a ideia de que o que a pessoa tem é na verdade “preguiça, falta de vontade, como se a pessoa tivesse controle sobre aquilo e não o exercesse. Mas, na medida que ela vira uma vítima dessa doença ou sintoma, vê que não é assim tão à merce da vontade da pessoa”.

O Dr. Luis Carlos reconstrói a memória de quando, ainda estudante, visitou hospitais psiquiátricos na vizinha Barbacena, há mais de vinte anos: “Ali você vê o esquisito, o feio, o desconhecido, o agressivo, o triste, na sua expressão mais forte. E é claro que se eu estou tentando – mal ou bem – me controlar, me conter, cuidar da minha vida, eu vejo aquilo como um perigo, um erro.”

Ninguém quer ser triste, todos querem ser fortes. A arena está cheia de heróis. Mas afinal... chegam os leões e a plateia aguarda.

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A fragilidade nos comove, toca, mas também mexe com nossos ânimos. E vivemos hoje um paradoxo. Em um mundo dominado, como as previsões apocalípticas de Baumann e Debord, pelo fim das relações, a mentira institucionalizada, a perda da memória, a competição, a materialização do sentimento, enfim um mundo em plena perturbação da essência humana, poderíamos até questionar: afinal, quem são os loucos? Os  que se ajustam ao caos, ou os que se perturbam? Nesse cenário, quem é o juiz? Claro que não nos cabe nenhuma resposta viável. E a sociedade parece que continuará a desejar enviar os histéricos para banhos frios, os depressivos para os trabalhos forçados e os bipolares para bem longe. Para os “pacientes pacientes”, é bom saber que o equilíbrio é possível, através de medicação, terapia e do acolhimento em seus círculos de convívio, contra as barreiras do estigma e discriminação.


Há uma esperança ainda maior partindo de profissionais como o psicólogo do SPA. Ele tem convicção de que ainda haverá a criação de remédios para nossas características individuais, quando então não iremos comprar uma Neosaldina que sirva para a dor de cabeça de todo mundo, e sim para nossa dor de cabeça. Para ele, “A vida vai ficando cada vez mais complexa. Cada pessoa é um universo, uma história”. Os dramas individuais são inúmeros, e são individuais.
            
O alento pode vir do velho dito popular: de médico e louco todo mundo tem um pouco. E é como enfim o Dr. Luis Carlos assevera: “Temos uma tendência muito ruim de querer padronizar tudo. Todo mundo tem seu grau de loucura e descontrole. É como se estivéssemos diante de um espelho, diante da loucura do outro que é mais manifesta, expressiva”.

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 Enfim, como um velho sonhador do movimento, seja qual for o movimento, acredito nas “flores para vencer o canhão”. E, como Arnaldo Baptista e Rita Lee imortalizaram na balada, aquela mesma, do louco, bordada de flores: “Louco é quem me diz que não é feliz”.

Ventania em cena no documentário “Só para Loucos”


Ventania/Foto: Lucas Machado
Por Marlon de Paula


Na Chegada em São Thomé das Letras, sul de Minas, eles seguiram para casa de um dos ícones da cidade. A campainha não tocava e, provavelmente, não deveria estar funcionando. Então gritaram para ver a presença de alguém na casa, chega Ventania, “em uma humildade surprendente para nos atender”, narra Diego Alexandre, graduando em Comunicação Social, pela Universidade Federal de São João del Rei, que recentemente embarcou na direção e roteiro do seu primeiro documentário com o título “Só para Loucos”.

Alexandre, em uma entrevista concedida à Tradução Literal, relata as experiências e intenções com o documentário. Trazendo olhares mais intimistas sobre a vida, família e a carreira do hippie mais famoso do Brasil, que ganhou fama por levar uma vida transcendental regada à base de muitos cogumelos azuis e maconha, tornando- se conhecido no Brasil com o ritmo “rock estroncho” que resgata valores da identidade hippie marcantes na década de 70.  

         
TL:Como começou a idéia de criação do documentário sobre o Ventania?


Diego Alexandre: Eu não conhecia a obra do Ventania, mas tenho uma amiga que tinha ido em vários shows dele e sempre falava. Um dia por curiosidade resolvi ouvir e, curti bastante. Pesquisei sobre ele na internet, li, vi a entrevista dele com o Danilo Gentili. Pensei comigo,  por que ninguém tinha feito um documentário sobre este cara? Entrei em contato com o empresário dele e, conversamos sobre minha vontade. Ele passou a idéia para o Ventania, que também achou legal e por fim agendamos. Procurei o pessoal da produtora Pato Preto, para eles entrarem com equipamento e com a produção. O Léo, integrante da produtora, me ajudou, montamos uma equipe e fomos para São Thomé.




TL:Quanto tempo durou o desenvolvimento do roteiro e início das filmagens?  Quais foram as dificuldades durante  o trabalho?

Diego Alexandre: Pouco menos de três meses foi a criação do roteiro e gravação em São Thomé das Letras. Como não o conhecia e, nunca tinha ido para São Thomé, não montei um roteiro pensando em um lugar. Eu assisti entrevistas com ele e fui anotando coisas legais que ele poderia contar. Eu queria que ele contasse a inspiração das canções. Fica claro nas músicas uma ligação direta com a vida dele. Queria perguntar também como é a viagem dele com o cogumelo e com as drogas principalmente.
Foram 3 dias de filmagens,  2 dias com o Ventania e, no último, fizemos externas da cidade.O primeiro dia fez sol, pensei “que legal! nós vamos gravar  tudo em externa!”, pois essa era minha ideia original, era gravar tudo pela cidade, na Pedra da Pirâmide e na Pedra da Bruxa. No segundo dia o tempo fechou, não dava para gravar nos lugares de São Thomé, era um lugar frio, de muita neblina. No terceiro dia, já choveu. Nada foi do jeito que planejei. Foi tudo na casa dele e, em parte, foi legal. A gente pegou momentos íntimos dele almoçando com a família, com a sogra dele que, às vezes, dá uma força para a mulher dele, filmamos a relação dele com o filhinho pequeno, o Raul. A gente pegou uma coisa bem íntima mesmo. Como ele mesmo disse, que estava contando coisas que nunca tinha falado em entrevista nenhuma.



TL: As gravações dentro da casa dele trazem um olhar mais próximo do dia a dia do artista, como pai, marido e morador de São Thomé, qual foi sua percepção durante os dias de filmagem?

Diego Alexandre: Ventania é uma pessoa muito simples, você chama do lado de fora, por que a campainha não funciona, e ele já te chama para ver quem que é. Tem sempre um monte de gente que vai em São Thomé e que quer conhecê-lo. Durante a gravação, chegou um pessoal de um moto clube, um cara levando o filho dele de 15 anos, que é cego e sempre quis conhecer o Ventania. A gente pegou este momento, do menino cantando e ganhando um CD autografado. Ventania chega oferecendo Beck pra todo mundo. Ele não está nem ai.
Teve coisa que a gente não vai mostrar até o lançamento do documentário que é a bíblia dos loucos. Muita gente vem procurando, é um livro artesanal, que ele escreve em papel. Ele conta a vida dele, mas ele não conta  com uma narrativa linear, ele vai jogando coisas e pensamentos. Com músicas, viagens que ele tem, ele vai colocando ali. Tem mais de 600 páginas. Ele perdeu algumas coisas. Tem umas histórias legais, ele fala pela primeira vez da família dele, da mãe, do pai. Teve um depoimento muito curioso sobre sua espiritualidade, ele fala sobre a bíblia, ele sabe passagens da bíblia e estuda isto, e isto não é uma coisa que você imagina, ele fala que uma pessoa sem fé é uma pessoa vazia.



TL:Nestes dias de vivência com ele, como é a relação do Ventania com as drogas?

Diego Alexandre: A maconha pra ele é uma coisa super normal, toda hora que você chega lá ele está fumando, ele fuma normalmente, ele estava fumando maconha segurando o filho de um lado, coisas que eu vou ter até que editar. Maconha pra ele é uma coisa super normal e acredito que outras drogas também. Tipo o chá de cogumelo, tem uma dose certa, ele fala que hoje não toma um balde de chá como tomava antigamente.

TL: O que você vai procurar mostrar neste documentário?

Diego Alexandre: Depoimentos do Ventania, da esposa dele e do amigo que toca com ele. A gente tem muito depoimento e muito material, tanto que penso em fazer um filme maior. A minha idéia mesmo é mostrar a intimidade dele, claro que vamos enfocar a obra dele, mas acho que  tudo é misturado. O Ventania artista não tem diferença do Ventania em casa, é uma figura totalmente original. Ele é uma pessoa natural, aquela pessoa que chama pra comer na casa dele, arrota, tudo na frente da câmera, ele gosta, não é deslumbrado pela fama.



O lançamento do documentário deverá ser em Janeiro do ano que vem, e provavelmente será veiculado na Mostra de Cinema de Tiradentes, caso consiga ser aprovado. 





BRINQUEDO DE MENINO CRESCIDO


Por Dani da Gama

Até 2008 skate era legalmente proibido em Blumenau. Em 2010, São Paulo tentou proibir o esporte (e meio de transporte!). Em 2013, em SJDR, o skate se arremessa contra a arquitetura urbana, de manobra em manobra, nos pés de Jan.

Fui encontrar meu personagem em casa, a reboque de um amigo em comum que repete desde que o conheço: “Se o Jan morasse em uma cidade como SP ele podia viver de skate, velho”. Acredito. Suas manobras são inacreditáveis.
Jan Yuri chega enganando seus 20 anos, com aquela cara de menino. Sou recebida, por acidente, com música na sala. Estranhei não vê-lo como nas fotos que conhecia. De dreadsloucos. Hoje está de chapéu, cabeça tecnicamente raspada. Um sorriso de menino, um menino de 20 anos. Alargardores na orelha, e uma despretensão de quem, bom atleta, só quer fazer o que gosta.
Pergunto sobre suas origens no esporte. “Comecei a andar de skate quando tinha 8 anos de idade, e foi porque meu irmão mais velho já tinha andando e nesse tempo ele tinha parado para entrar no quartel. Aí eu usei o skate que ele andava, e até hoje eu ando, mas não no mesmo skate”, ri. Jan aprendeu muito participando de campeonatos do circuito mineiro, quando aconteciam disputas com frequência, entre 2000 e 2006. “Todo ano tinha no mínimo duas competições. Eu não ficava bem posicionado não, eu era muito novo, aqui não tinha pista de skate, chegava lá tinha que andar numa pista que a gente nunca viu, mas assim podia ver quem andava há mais tempo e aprender alguma coisa”.
Hoje quase não há campeonatos. Jan tem patrocínio da marca Custom, de Santa Cruz de Minas, cidade onde trabalha. Mas explica que no começo teve muito apoio da família. “Por eu ter começado muito novo sempre tive muito apoio do meu pai, que nunca deixou faltar material pra eu andar, me levava pra andar no Vereda, que era a única pista que tinha aqui. A dificuldade nessa questão não era tanta, o preço do material era mais barato. Mas aqui não tinha ninguém que andava, aí a gente tinha que aprender sozinho na marra, quando a gente viajava era que via alguma coisa diferente nos campeonatos”.


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A conversa é divertida, com violão ao fundo. Resolvo perguntar sobre o trágico. Conte um tombo memorável, peço. Ele é sábio na resposta. “Quando você bate a cabeça é quando você toma o maior susto. Depois disso te garanto que você não bate
no mesmo lugar de novo não, fica mais cauteloso, mais esperto. Na próxima vez que você for fazer você se previne para não acontecer o mesmo...”. Enfim, a vida, metaforicamente.
Pergunto de outra dificuldade. Jan pratica um esporte muitas vezes marginalizado, em uma cidade tradicional, de interior. Quero saber se isso é uma barreira. Jan também consegue compreender isso como um incentivo. “Se alguma coisa for desenvolvida e registrada, vai ter partido da ‘gente’ que começou, e isso me incentiva: ver que continuou, nao é mais ‘a gente’ só, que anda. Por mais que seja pouco o incentivo ele é muito maior do que em 2003, 2004.”
Anoto no meu caderno, acho que o menino levou muito tombo. Ele sabe demais.


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Jan pratica skate de rua. Ao contrário de uma pista calculada para manobras, sua pista é a cidade. Em SJDR, então, a pista de Jan é o cenário barroco da cidade dos sinos. “O legal disso é que você faz uma coisa num lugar meio improvável, quando tu consegue um registro nessa situação improvável, ‘andar de skate no cenário barroco’, o resultado final é diferente e chama a atenção pra quem está acostumado a praticar na pista, no mármore extremamente liso, que facilita, até, as condiçõs da manobra”. Falo sobre o uso dos equipamentos urbanos para as manobras – corrimão, escada, ladeiras: tudo vira pista. “A arquitetura, né?”, filosofa: “A questão do skate é mais o contato que você tem com ele. Você começa a brincar com isso, aproveitar uma manobra e partir para outra, começa com o básico e vai aprimorando com criatividade, e cada arquitetura, construção urbana te proporciona uma manobra. E cada skatista tem uma visão da manobra da forma como anda no skate. Você tem mais intimidade e consegue ir com ele em lugares que voce não iria sem ele”.
Sim. Como um brinquedo mesmo, de menino grande.
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Mas nem tudo são flores. Como conta nosso atleta, “o skate é praticado na rua e na rua você vê de tudo – o positivo e o negativo, só que extremamente.” E o skate ainda hoje é tratado com reservas. “É mal visto porque, pelas manobras serem de impacto, se o chão não for bom, provavelmente vai quebrar. Ou o skate pode quebrar. Como você pode se quebrar!”. Coisa séria fica leve na risada brejeira.
Jan interpreta que o que se critica no skatista são coisas que em pessoas “normais” – entendo, os normais são os que não andam de skate! – também seriam criticadas. O problema é que: o que o skatista faz, ele faz com o skate debaixo do braço – seja algo bom como uma iniciativa cultural, seja algo ruim – sempre relativo...
“O skate é dado como um brinquedo pro fiho, que vai tomar gosto e não vai querer fazer mais nada... ele é tao fascinante que se você se deixar levar pelo prazer
dele vai ficar só no skate, deixar de estudar, ir na aula... Aconteceu comigo, mas eu não me deixei levar...” Jan teoriza: “O skate é tao envolvente que ele se torna uma parte do seu corpo. Alguém que vê você, vai ver você com o skate, e vão generalizar: ‘skatistas fazem isso’”.
Isso dá uma séria discussão metafísica, sociológica. Jan brinca e se desculpa: “Vai ficar muito confusa essa entrevista!”.
Mas penso que, ouvindo Jan, o skate para mim está ficando cada vez mais claro.


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Peço para falar dos campeonatos que ganhou. Troféus? Do alto de sua simplicidade, um ponto de interrogação se abre no mesmo lugar onde irá se acender um sorriso: “O que importa é o skate, um chão liso, uma pessoa no skate e vai acontecer tudo que você quiser, quase!”, ri. Ele não sabe quantos campeonatos venceu. Decide que campeonatos que ganhou nem são importantes para a entrevista. Nem para ele. “O que importa pro skatista é material para continuar andando de skate. Já ganhei campeonato que não lembro. Compito desde os 9 anos de idade, sacou? Aconteceu de eu ficar em primeiro em vários e não tenho registro de todos. O que importa é incentivar o skatista que ganhou no dia, que andou melhor, com material para ele continuar andando e poder se desenvolver mais”. Certo, Jan. A gente sacou.
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É tarde, e pensei em um final poético para a matéria. Perguntei, inocente no meu clichê jornalístico: “Em uma palavra, o que você sente quando desce o skate no asfalto?”. Ele pára, pensa segundos. E derrama:


- Aeeeeee!!!!!!


Desligo o gravador, satisfeita.
Não é só uma interjeição, leitor, compreenda. Para quem vê esse guri brilhante, é pura poesia.

MAR PORTUGUÊS


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem acabei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que segue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.

AUTOPSICOGRAFIA


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

O Amor


O AMOR, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar, 
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

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