DIZEM QUE SOU LOUCO
Foto: Cecília Santos |
Chego ao posto de atendimento e triagem do SUS. Quase em estado de SOS. “Preciso tratamento psicológico. É aqui que consigo encaminhamento?”. A atendente, sem nem olhar para cima arrasta o grosso caderno, escolhe um horário, me agenda para uma avaliação. Pronto, em uma semana serei atendida. “Hum, certo, mas .. estou em crise neste momento. Não há como eu consultar com um psiquiatra, um psicólogo?, preciso de um atestado para a ausência ocorrida nas aulas”. A atendente me olha como quem “entendeu tudo”. Tento me explicar, que não sou exatamente isso que ela está pensando – não estou aqui tentando folga para o trabalho ou matar aula, e argumento: “Ei, o que eu tenho tem CID, é doença. Eu tenho direito a pedir um atestado...” . Nada feito.Seria melhor eu ter dito que estava com uma crise de rinite.
Por Dani da Gama
Enquanto aguardo para ser atendida no centro de saúde mental, uma simpática portinha meio ao centro histórico de São João del-Rei – visão doce e bucólica para os pacientes que abarrotam a sala de espera, uma jovem aparentemente saudável-normal-feliz que acompanha uma provável parente – emudecida e longínqua – comenta indignada: “Olha como está São João del Rei – todo mundo viciado em Rivotril, Clonazepan.. todo mundo com depressão”.
Dados: 450
milhões de pessoas sofrem ou sofrerão de problemas mentais, neurológicos ou
comportamentais ao longo da vida (quem diz é a OMS). Depressão (2º.maior
problema de saúde pública no mundo), pânico (que acomete 3,5% da população),
Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), esquizofrenia, transtorno do estresse pós-traumático, transtorno
obssessivo compulsivo (TOC), fobias, transtorno
bipolar, transtornos alimentares, paranoia, transtornos vindos da toxicodependência.
Afinal, em nosso mundo líquido e incerto, meio a crises de valores,
relacionamentos superficiais, ode ao materialismo, hedonismo, corrida pelo
sucesso – leia-se carro zero, bom cargo, televisão full qualquer coisae coração empty
ever – quem é louco? Quem se acostuma e se adapta à “normalidade”? Ou quem,
inevitavelmente e sem estômago, pira?...
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Doenças e mais doenças. É compreensível: constatam-se cada vez
mais casos de problemas de saúde mental, fragilizada pelo mundo caótico,
metrópoles em que a solidão é o pano de fundo do engarrafamento de carros,
sons, luzes, pessoas que se esbarram, relacionamentos que duram minutos,
sirenes e medos constantes. A violência atinge cidades moderadamente serenas
como esta em que os sinos conversam. (Talvez, eles conversem mais do que os
transeuntes, cada vez mais solitários em suas ilhas).
A banalização, por outro lado, acompanha o crescimento dos casos, principalmente os mais comuns como Transtorno Obssessivo Compulsivo, Depressão, Bipolaridade. E a “novidade” chega à Hollywood com suas estereotipagens universalizantes. Na cena do filme o personagem postula:“Você tem TOC*”. A cena se passa em uma sala, uma TV transmitindo um jogo de futebol e um torcedor fanático que organiza os controles remotos em linha diagonal na mesinha de canto para que seu time vença a partida. A fantasia mostra aquele personagem perturbado incrivelmente metódico e chato que segura um lenço como amuleto em finais de jogos de basquete, e a sociedade passa a encarar mais uma leva de “doentes” como pessoas apenas supersticiosas, incapazes e cheias de manias, o que reduz – e muito – o quadro de um obssessivo-compulsivo. Assim, numa pretensa tentativa de abordar o tema e torna-lo comum, as ideias inexatas e nem sempre verdadeiras que a mídia propaga dos distúrbios mentais acabam por prejudicar a situação, já difícil, dos seus portadores.
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Lembro da primeira consulta a um psiquiatra. Na sala de
espera em vão tentava parecer normal, quanto mais me esforçava mais reparava
que qualquer coisa que eu fizesse poderia apontar uma possível esquizofrenia,
ansiedade, neurose, psicose...! Já na consulta, o doutor me diz - o que você
tem é TOC, você vai melhorar. Você ainda vai ter um namorado. Eu não ri,
obviamente. Mas pareceu-me cômico se nao fosse trágico – quando você se torna
vítima da doença, tudolhe parece muito, muito impossível.
J.H**
(31 anos), faz tratamento para transtorno bipolar. Ela conta que o distúrbio consumiu e arruinou uma parte muito grande de sua vida até
agora. “Sem diagnóstico e me sentindo deslocada no mundo, eu ganhei muitos
rótulos dado ao comportamento afetado pelas variações de humor. Tudo foi
afetado: trabalho, vida amorosa, carreira. Em família, era complicado não ter
crédito nem confiança, no trabalho era impossível ter concentração e foco e nos
relacionamentos era impraticável administrar os danos causados pela falta de
estabilidade”. Em meio ao caos, confessa que em muitos momentos pensou em
“desistir” e que levou tempo até o efeito do tratamento fazê-la se sentir
participando do mundo novamente. Mas J.H. depõe consciente e otimista: “É um
saco ter que tomar remédio pra sempre, viver com o medo que as pessoas têm de
eu ter uma crise e principalmente com o fato de que eu não posso deixar de me
policiar o tempo todo. Apesar de tudo que é ruim, é muito bom ter encontrado a
combinação certa de medicamentos e me conformado com a necessidade da medicação
e da terapia. As mudanças no estilo de vida são muito grandes, mas compensam se
for pra me sentir em paz comigo”.
Já Dorotéia de Cássia Miranda (54 anos)tem TOC (Transtorno Obssessivo Compulsivo) desde os 17, quando sua filha nasceu. Ela conta que por causa do TOC teve muitos problemas familiares: “Aconteciam muitas brigas inclusive com minha mãe, eu acabei me divorciando e fui me afastando cada vez mais da família, inclusive da minha filha. Eu tinha muitas manias inclusive de limpeza e organização por isso não consegui conviver com crianças. E minha filha era uma criança”, conta.Esse afastamento trouxe graves consequências para seu relacionamento com a filha, porque entre organização, limpeza, e a menina, optou pela organização e limpeza. Hoje Dorotéia busca uma conciliação consigo e com a filha: “Isso me trazia muita culpa porque eu me achava um monstro e não sabia que estava doente, há um ano descobri o TOC e de lá para cá minha filha me perdoou e nosso
relacionamento
vem melhorando aos poucos”. Ela depõe ainda: “Por 37 anos eu escondi o TOC ,
mesmo porque tinha muita vergonha”. Além de TOC, Doroteia também manifesta TAG (Transtorno
da Ansiedade Generalizada)e déficit de atenção. Tais transtornos atrapalharam
sua vida profissional e escolar. Ela narra que na escola sofreu preconceito por
parte de professores e alunos. “Consegui me formar professora a muito custo,
mas não consegui fazer faculdade, não dei conta, também profissionalmente
fracassei, pq mais uma vez não consegui lidar com desorganização e sujeira das
crianças”.
Apesar dos 37 anos que conviveu com estes transtornos, sem tratamento, hoje Dorotéia demonstra coragem e otimismo. Ao nos dar a entrevista, recusou o anonimato: “Pode colocar meu nome todo se precisar, porque hoje o que eu quero é gritar: hoje estou liberta dos sintomas do TOC e tratando da TAG, grito mesmo sem vergonha nenhuma, sofro de doença mental, e se voce tem preconceito se afaste, porque perto de mim desejo apenas os que me amam como sou realmente.”
Apesar dos 37 anos que conviveu com estes transtornos, sem tratamento, hoje Dorotéia demonstra coragem e otimismo. Ao nos dar a entrevista, recusou o anonimato: “Pode colocar meu nome todo se precisar, porque hoje o que eu quero é gritar: hoje estou liberta dos sintomas do TOC e tratando da TAG, grito mesmo sem vergonha nenhuma, sofro de doença mental, e se voce tem preconceito se afaste, porque perto de mim desejo apenas os que me amam como sou realmente.”
É claro no discurso de Dorotéia e J.H. a dificuldade que o portador de doenças psíquicas sofre consigo mesmo. A vergonha, a culpa, o“fracasso” e a “ruína” estão na tônica de seus depoimentos. A falta de compreensão da sociedade é um segundo round para uma luta que já acontece internamente, e talvez de forma mais cruel – o preconceito contra si mesmo.
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Transtornos Mentais e
Comportamentais: condições caracterizadas por alterações mórbidas do modo de
pensar, e/ou do humor, e/ou por alterações do comportamento associadas à
angústia expressiva, e/ou deterioração do funcionamento psíquico global. (diz a
OMS). E entre tantas denominações – transtorno, doença, distúrbio? – a psiquiatra Dra. Natalia de Menezes Ramos explica que as diferenças de
terminologia servem para a comunicação entre os médicos e que gradativamente
substituiram o termo “doença mental”, pelo de“transtorno mental”, como uma
solução vocabular. Mas isso não tem mudado muito para os doentes, transtornados
ou seja lá do que queiramos chamar.
Conforme
o psicólogo Luis Carlos Rezende, que realiza atendimento no SPA (Serviço de
Psicologia Aplicada) ligado ao Departamento de Psicologia da UFSJ, há dois grandes grupos
de doenças mentais: as psicoses e as neuroses: “Na psicose existe uma
desestruturação.Em termos físicos seria como se a pessoa não tivesse um braço,
uma perna. Ela teria que usar uma prótese.A terapia para a psicose seria dar ao
paciente uma estrutura de contato com a realidade”. Para nos explicar melhor, o
doutor dá um exemplo um pouco extremo: o paciente pode olhar para uma cadeira e
chamar de chiclete, de calça. Nestes pacientes, o simbólico funciona, mas sem
uma ligação com a realidade. Já no caso da neurose a pessoa tem uma estrutura,
mas ela funciona mal. Mais uma vez fazendo uma ponte com o corpo físico, o Dr.
Luis Carlos nos exemplifica: “Na neurose é como se você tem a perna mas não
consegue andar direito.” Por isso é tão importante a ajuda terapêutica e
diagnóstica, para que se saiba o que está acontecendo, e como ajudar o
paciente.
Mas nem sempre o portador tem consciência ou auto-aceitação suficiente para buscar ajuda e diagnóstico. O preconceito afasta as pessoas do consultório, e este preconceito é na verdade histórico e cultural.“Se voce estudar a história da loucura,” explica a psiquiatra Dra. Natalia de Menezes Ramos, “ela por muito tempo foi vista pelo lado moral”. A Dra. Natalia nos fala sobre a ‘Grande Internação’ (tratamento moral da loucura ocorrido na Europano século XVI, através da tentativa de sua exclusão do seio da sociedade) e que engolia “qualquer coisa que se desviasse da norma moral vigente – loucos, ladrões, alcoolistas”, levando estas pessoas para instituições consideradas apropriadas para tratamento.
O interessante é que depois de um tempo, houve uma separação destes internos, porque os bandidos não queriam ficar no mesmo pátio que os loucos.
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Até
hoje os portadores de transtornos mentais carregam esse estigma, de serem
“errados, inferiores”. Há, segundo a psiquiatra, a visão de que “a pessoa está
assim porque não reage”, o que advém do peso dessa História em que o paradigma
da psiquiatria era o tratamento de correção moral
para os doentes. A Dra. Natalia ainda afirma que, tanto se referia a doença
mental a um desvio de conduta, que o profissional responsável pela avaliação e
encaminhamento dos doentes (e seu necessário afastamento do convívio social)
era um juiz, e não um médico.
Hoje
os avanços da ciência no conhecimento do cérebro humano possibilitam conhecer
as origens dos transtornos, e trata-los longe da consideração de desvio de
conduta ou fraquezas comportamentais. É ainda a dra. Natalia quem explica: “Há (nestes
transtornos) uma alteração biológica, farmacológica do cérebro. A medicação não
é para sedar, é para corrigir uma alteração neuroquímica.”
Da
mesma forma, o Dr. Luis Carlos reafirma a questão orgânica na expressão
comportamental: “Se você mexe na química da pessoa, algo na expressão
comportamental também muda. Temos que parar de pensar o ser humano em uma resposta ‘é ou não é, sim
ou não’”, postula, e completa: “A vida te dá emoção, pensamento, como te dá um
braço. Essa parte abstrata você desconhece mas você pode expressa-la, assim
como a gente vê o amor, o ódio, a disposição de ajudar, construir, destruir”.
Estamos quase perdoados.
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O psicólogo Luis Carlos considera que devemos ver o ser humano como um todo. Essa
concepção do homem de forma total deixa clara a vinculação do físico, do
emocional e do psicológico. “A ideia que há um tempo atrás separava o corpo e a
alma, a alma como algo que tem que continuar e o corpo como algo que vai acabar,
para mim é uma inverdade. O ser humano é uma harmonia, é um todo.”
Perguntei a ele por que os pacientes
ainda hoje sofrem tanta discriminação. A pergunta que realmente me movia àquela
altura era por que a rinite é doença, tratável, perdoável, atestável, e uma
crise de transtorno bipolar não?? O Dr. Luis Carlos dá sua versão: “Se a pessoa
tem uma gripe e eu tenho medo de pegar, eu não chego perto, eu tenho mecanismos
que reconheço como possíveis de me proteger. A doença mental, o comportamento,
só de a pessoa manifestar, ela já mexe também comigo, porque se nós temos uma
mesma matriz e vejo alguém deprimido, eu passo a pensar que eu também posso
ficar deprimido.” Dentro dessa perspectiva de que nós tememos o que não
conhecemos, nós nos protegemos através do evitamento: “Nosso pensamento
funciona de uma maneira sem controle. Se existe um copo cheio de água
simbolizando que vou ficar doido quando isso encher, vão acontecendo decepções,
alegrias, de repente a gota d’agua da expressão do outro desencadeia em mim meu
processo de loucura.” É mais fácil, portanto, considerar que o outro é pior do que eu, que em mim não pega.
E então, se a sociedade pratica o evitamento, por que não existe um acolhimento entre as pessoas do círculo de convivência do doente? O Dr. Luis Carlos também explica: “Os familiares de uma pessoa com sintomas de depressão não sabem como lidar com isso porque temem que aquilo possa se estender a eles”. Ressalta ainda que é comum a ideia de que o que a pessoa tem é na verdade “preguiça, falta de vontade, como se a pessoa tivesse controle sobre aquilo e não o exercesse. Mas, na medida que ela vira uma vítima dessa doença ou sintoma, vê que não é assim tão à merce da vontade da pessoa”.
O Dr. Luis Carlos reconstrói a memória de quando, ainda estudante, visitou hospitais psiquiátricos na vizinha Barbacena, há mais de vinte anos: “Ali você vê o esquisito, o feio, o desconhecido, o agressivo, o triste, na sua expressão mais forte. E é claro que se eu estou tentando – mal ou bem – me controlar, me conter, cuidar da minha vida, eu vejo aquilo como um perigo, um erro.”
Ninguém quer ser triste, todos querem ser fortes. A arena está cheia de heróis. Mas afinal... chegam os leões e a plateia aguarda.
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A fragilidade nos comove,
toca, mas também mexe com nossos ânimos. E vivemos hoje um paradoxo. Em um
mundo dominado, como as previsões apocalípticas de Baumann e Debord, pelo fim
das relações, a mentira institucionalizada, a perda da memória, a competição, a
materialização do sentimento, enfim um mundo em plena perturbação da essência
humana, poderíamos até questionar: afinal, quem são os loucos? Os que se ajustam ao caos, ou os que se
perturbam? Nesse cenário, quem é o juiz? Claro que não nos cabe nenhuma
resposta viável. E a sociedade parece que continuará a desejar enviar os
histéricos para banhos frios, os depressivos para os trabalhos forçados e os bipolares
para bem longe. Para os “pacientes pacientes”, é bom saber que o equilíbrio é
possível, através de medicação, terapia e do acolhimento em seus círculos de
convívio, contra as barreiras do estigma e discriminação.
Há uma esperança ainda maior partindo de profissionais como o psicólogo do SPA. Ele tem convicção de que ainda haverá a criação de remédios para nossas características individuais, quando então não iremos comprar uma Neosaldina que sirva para a dor de cabeça de todo mundo, e sim para nossa dor de cabeça. Para ele, “A vida vai ficando cada vez mais complexa. Cada pessoa é um universo, uma história”. Os dramas individuais são inúmeros, e são individuais.
O alento pode vir do velho dito popular: de médico e louco todo mundo tem um pouco. E é como enfim o Dr. Luis Carlos assevera: “Temos uma tendência muito ruim de querer padronizar tudo. Todo mundo tem seu grau de loucura e descontrole. É como se estivéssemos diante de um espelho, diante da loucura do outro que é mais manifesta, expressiva”.
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Enfim, como um velho sonhador do movimento, seja qual for
o movimento, acredito nas “flores para vencer o canhão”. E, como Arnaldo Baptista
e Rita Lee imortalizaram na balada, aquela mesma, do louco, bordada de flores: “Louco
é quem me diz que não é feliz”.